...ela olhava o sol laranja deitar no canto de trás da casa.
Na sombra as árvores secas de galho retorcido, pretas e causticadas, castigadas pela
coroa dourada que dormiria logo, viu dois carcarás a espreita dum lagarto rasteiro.
Os olhos de Maria, da íris amarela, redondos como de pássaro assustado, pousavam no quieto
sobre os braços fininhos na janela de barro da casa pau-a-pique no meio do chão esquartejado e poeirento.
La fora, um boi magro, um chifre cortado uma marca marrom enferrujada no lombo com um não-sei-o-que qualquer
, as duas galinhas, magricelas também, catando vermes no chão e levantando as cabeças de crista empoeirada. A esqualida e vermelha cega, tascava as patas na
outra, tacteando assim sua rival na busca por algo que não fosse uma pedra.
Com umas poucas ciscadas e uma longa briga repartiram uma minhoca lamacenta escavada durante a tarde.
A boca seca, pequena e cortada de Maria balbuciou qualquer coisa antes de sorrir sem mostrar os dentes e logo adquiriu
a mesma expressão quieta de cera, viu a pequena poça que se formara no longe de sua casa refletir uns pássaros voando em direção ao sul.
Sabia bem onde era o sul. Toda noite sua mãe lhe contava histórias duma terra cheia de verde onde outrora seu pai lhe pediu em casamento
e onde Maria dos olhos amarelos havia nascido.
Vieram muito novos pro sertão, a mãe de Maria tinha seus 15 anos ao levar Maria nos braços e seu pai pouco mais de 21.
A busca por trabalho fácil os trouxe na carreta dum Mercedes dois eixos, azul desgastado.
Eu em sua sombra os acompanhava quieto, mesmo sendo velho nunca dei minha opinião. Sempre escutei tudo, nunca falei nada.
Cuido de Maria desde seu engatinhar mais singelo.
Pro Sul também, seu pai havia voltado dois anos antes de hoje. Deixando pra trás, Maria, 4 anos de vida Quixote, seu irmão e Helena, sua mãe.
A casa de barro e taquara, os bois as galinhas, o cão, o chão, o sertão, e Maria.
Maria dos olhos redondos tal jaboticaba madura viram passar ali o Severino, aquele da Maria, do finado Zacarias, da serra
ossuda, da vida sofrida, da enxada quebrada.
O Severino da barriga vazia. Sofrido de morte nascida, matado de morte emboscada.
Virou seus olhinhos prum canto vesgo, num musgo seco, a alga morta, naquele canto, pretensa horta, farta de areia,
brotava no chão, seco como o coração da Maria, um botão de flor, uma rosa de amor. Um pedaço de sonho, que Maria viu
desaparecer, por que ali, chover não era coisa de sempre, era coisa de santo. Era milagre de tonto, quem acreditava era Padre, em terço de madre,
Maria de nossa senhora a Virgem. A mamãe do Cristo, do pobre e bonito nosso senhor.
Na prece da viuvá chorosa, que fazia frente ao lado do jumento, esse também em terno preto que puxava o carro que carregava o morto.
Maria sentiu a dor, de perder no horizonte, a flor, a paz, o amor e o medo.
Ela ali debruçada no cantinho da janela, que pequena já existia, "desdo" tempo da avó. Olhando o sul, olhando o chão, perdida no mar
que reflectia no piso seco, da lajota de terra, na terra de Maria.
Todo dia, sempre fazia, a mesma varia, acordava com o sol, nos olhos, sol dos olhos que eram a luz, eram o sol brilhando no céu do sertão,
naquele sol, matutino, matutava uma solução, 6 anos de vida nas mãos, se preocupava em comer,
até sentir a barriga doer, até poder ver, um raminho uma raiz,
uma palma uma planta. A comida do boi, a sua comida, o ovo da galinha magra, no galinheiro colhia.
Moendo a farinha, remoendo a tristeza. Fazia o mar, nas lagriminhas salgadas da Maria, que molhavam a farinha.
Todo dia, pintava no chão a poesia, chorava no colo da Luzia, a amiga fada do seu sonho. A fada que mamãe dizia, que um dia feliz te faria. Sonhava Maria.
Vai voltar pro Sul e ver papai.
Os cabelinhos de Maria, dourdinhos enrolados, presos no laço, vermelho do lenço, que sua mãe tinha. Poido, velhinho no todo,
mas que daquela cabeça, jamais saia.
Capinava a Maria, o chão da fazendinha, como boneca de trapo laranja, da minha sofrida. Olhando sempre o sol que se cegava
ao ver-se refletido naqueles olhos amarelos de limão.
E eu meu olhar ali deitava, no canto aquietava.
Quem conseguiria, engolir um gole d'gua que fosse, ao ver li Maria, seu metro e pouquinho, capinando no chãozinho, seco de doer sem ter o que comer,
pintada óleo, sem cor sem vida, contrastada pela dor, pelo olho colorida.
Nem brilha seu sorriso, toda noite que não dorme, conta uma estrela no céu, pedido que retorne, o papai amado da vida.
O Quixote vai a escola, pelo prato de comida, caminha 7 léguas, logo cedo da matina, chega noite quase escura, traz as veiz o lampião,
pega com a mão de 8 anos, um livro e um pão.
A outra mão de 8 anos, se perdeu à três passados, onde ele e o jumento o mesmo que levava o defunto, levava no dia seu arado.
O Quixote, era o valente, sem um braço, combatente, fazia do seu dia uma aventura de Golias, era gigante, tinha seus 1 metro e muitos.
Era filho de defuntos, órfão de pai de mãe e de nascimento.
Veio no mesmo caminhar, andou pelo mesmo beira-mar, pra chegar no sertão. Ali onde um não, é melhor que a solidão.
Ele me tinha por amigo, era o que mais falava comigo. Foi quem me trouxe ao abrigo quando eu ainda mal caminhava.
Éramos, uma família.
Tudo com essa vida de cão, em matilha, em partilha. Irmão, eu a mãe e a filha.
Por esses lados onde o vento mal vem, e ainda com algum desdém, quando não trás má noticia, tras no senho a "imundicia" de ser moléstia.
Foi quando o boato, que de atraso ser fato, era real e perigosa. Uma tal peste dolorosa, sem cor silenciosa. Que não batia a porta mas que da guampa torta
arrancava o sopro da vida.
Era cedo, era Junho, quando o pó que levantava da fazenda cessou.
Corri pra ver onde andava Maria, que da comida cuidava, na terra plantada.
Ao vê-la caída no chão, voltei correndo pra casa e chamei atenção da mãe até que ela viesse comigo pra trazermos a Maria pra sua cama.
No colchão de retalho, mais parecendo mortalho a mãe a deitou, ao lado ajoelhou, enquanto no delírio do seu febril suor, Maria chamava pelo pai.
- Ele tá vindo!!!
Foi a primeira vez que ouvi ela falar desde o dia em que chorosamente pediu a Deus que não levasse Quixote no acidente.
-Quem meu amor... quem tá vindo? balbuciava a mãe sem voz tentando manter normal a temperatura da febril criaturinha.
(o anjo que ali pairava, tomado de compaixão, se encheu de atenção, alçou sua mão, ao nosso senhor Jesus, pediu pro sofriente da cruz, que trouxesse o pai
amado).
- Papai, papai tá vindo... , dito isso, fechou os olhos e o escuro do quarto se abateu sobre nós..
( o anjo encharcado no próprio sofrer, viu Maria esmorecer, sem poder dizer, nenhuma palavra.)
- Ai meu Deus... Ai meu Deus... berrava a pobre mãe com a filha fervendo
nos braços, como se ao gritar o Senhor lhe ouvisse;
(eu vi bater suas asas, leves em pluma branca, como garça alva e franca, subir pelo teto)
4 dias depois, sem forças pra respirar, o Sol se apagou no canto oeste daquele fim-de-mundo. Pela ultima vez se ouviu o pranto da Maria.
Pela ultima vez, seu olho de ouro abrira.
Na tarde do fim do Junho,
uma ventania esquerda, chamava o resto de chão pra voar, esfarelado no redemoinho, por trás do passo rasino. Um caminhante a andar.
Não tinha mais que um metro e tanto, era de causar certo espanto, a largura dos seus ombros.
O cabelo enrolado, no curto cortado, da pele curtida. Do couro tercado, da calça puida.
Veio cabeça baixa, veio fala mansa, veio de longe porque o pó dessa andança, inda tava nas vestes.
Chegou ali, como quem conhecesse a mão em que pisava, a palma que avisava, onde ele tava.
Sem bater pisou de pé direito, não parou nem no ver de perto, uma mão sobre a outra sobre o peito.
No tecido preto, a mortalha que cobria, sua prole sua cria.
Ali, pairava a pequena Maria.
Na taquara de cama, de cama falecia.
Nem suspiro dava, nem o olho que fechava. Nem a morte que doía.
Nem respirar o pai conseguia, sua garganta seca não abria, seu olhar compadecia, sabia que era tarde, pra ver o brilho de Maria.
O anjo, pousado sobre o ombro, triste sem consolo, olhava e eu o via.
O pai sentou ao lado, da jóia mais preciosa, que tanto amava, que tanta falta fez.
- Meu anjinho me chamou, eu voltei. Ingrato tempo, ingrato vento.
Vê, o que mais queremos, é o que menos precisamos. Quando o temos, não vemos, desperdiçamos.
Pra recuperar, tempo não há.
Quando tiveres nas mãos, uma jóia, não deixa escapar. Esse tempo não volta.
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Olha, apesar de não nos falarmos mais eu me arrisco a dizer que a tua escrita melhora diariamente. Tens um feeling absurdo pra isso.
Adorei o texto. Me lembrou um pouco da Hora da Estrela da Clarice Lispector... da Macabéia. A Maria, pra mim, é a Macabéia.
Perfeito.
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